24 de outubro de 2007

Conto de farsas

Em uma pacata vila, distante das metrópoles, viviam vinte e poucas pessoas em algumas casas em uma única rua. Não havia prédios, nem asfalto e nem comércio sofisticado, havia apenas uma lojinha da Tia Josephine que abusava nos preços de seus bibelôs, cereais, ferramentas e pantufas felpudas cor caramelo. Uma única capela em sinal da religião no final da rua. Não havia prefeitura, correio nem cadeia, pois em um lugar tão pequeno não precisava impor leis, mandar cartas e muito menos havia motivos para cometer crimes.
Na casa verde, ao lado da lojinha, morava Arthur, um jovem de vinte e poucos anos, alto, claro e muito magro. Andava sempre com seu encardido chapéu panamá e isso reforçava ainda mais a impressão de jovem misterioso que causava às pessoas. Passava mais tempo em seu porão do que na rua ou até mais do que passava em sua “casa”.
Do outro lado da rua morava Fiona Escarlate que vivia em uma casa cor-de-rosa-bebê decorada com coelhos brancos onde, na varanda, tinha muitos bebedouros para beija-flores. A casa de Fiona mostrava sua personalidade, uma jovem romântica, sensível e sentimentalista, vivia usando vestidos de bolinhas e/ou florzinhas multicoloridas e prendia seu cabelo com alguma presilha em forma de coelho, que fazia parte de sua coleção de presilhas em forma de coelho.
Esses dois personagens fariam parte de um conto sem final feliz e nada agradável.

Em um dia chuvoso, Fiona voltava da lojinha com um pacote de farinha de trigo e uma compota de geléia de ameixa e horas depois estava na soleira da casa verde segurando um apetitoso bolo de ameixa em uma das mãos e usava uma capa de chuva vermelha. Arthur abriu a porta com a cara amassada, pois ainda eram 8 horas da manhã e ofereceu Fiona a entrar que logo tirou sua capa de chuva.
“Trouxe esse bolo pra você, como café da manhã, está a fim?”
“Lógico, não agüento mais comer pão seco e tomar café frio.”
“Ué, você come pão seco? Porque não passa manteiga?”
“As facas.”
“Facas? O que tem as facas?”
“Para abrir o pão preciso usar facas e uma delas pode acidentalmente cortar meu pulso, vou ter uma hemorragia e morrer.”
“Nossa que horror! E porque toma café frio?”
“Por causa do fogão. Eu não uso fogão, o gás pode fazer com que ocorra uma explosão e voar tudo para o alto. É por isso que não uso o fogão e tenho que me contentar com pratos frios, como a sopa de feijão frio todos os dias no almoço e no jantar.”
“Credo! Eu não comeria sopa de feijão frio nunca!”
“Então tente comer algo que não use o fogão para esquentar.”
“Eu comeria bolachas!”
“Bolachas podem passar para a laringe e bloquear a entrada do ar, fazendo com que engasgue e morra por falta de ar.”
“Eu nunca tinha visto por esse ângulo.” Disse Fiona franzindo a testa “Já sei! Farei seu almoço e seu jantar todos os dias e virei para te acompanhar.”
“Tudo bem.” Disse Arthur indiferente “Venha hoje trazer meu almoço às doze horas em ponto e não se atrase, pois posso ficar esperando e morrer de fome.”
“O.K.!” disse Fiona, feliz em servir seu amor secreto desde a infância, desde quando a mãe de Arthur vivia com ele e não tinha o abandonado ainda e este brincava na rua com as outras crianças da vila “estarei prontamente aqui ao meio-dia com um prato que não seja feito de feijões frios.”
Alguns dias se passaram até Fiona criar coragem de indagar Arthur “Por que você tem medo de tudo? Medo dos objetos mais simples, sendo que você os tem. Então porque você convive com eles?”
Ele continuou em silêncio comendo seu cozido de frango e não a respondeu e ela compreendeu que ele não queria comentar sobre aquele assunto. Então quando acabaram de comer, ele a enxotou como fazia todos os dias.
Passaram-se vários dias e não houve um em que Fiona não fosse. Acabou se tocando que sempre que acabavam de comer, Arthur a enxotava, e ela como uma romântica sentimentalista tola ficava da janela de sua casa observando os passos de seu amado e um dia viu que a luz do porão ficava acesa pernoitando.
Um dia, no almoço, macarrão à putanesca e rosbife, Fiona resolveu se declarar, na expectativa de que Arthur não desconfiasse de nada.
“Posso dar-lhe um beijo?”
“Beijo? Você sabe quantos germes há em um beijo? Nunca beijei e nunca irei beijar, posso ficar doente e morrer com alguma infecção.”
“Que radical você é! Tem medo de tudo, como sobrevive?”
“Sobrevivendo, ora!”
Então Fiona, em um gesto impensado, talvez um reflexo, roubou um beijo de Arthur.
“Eca, você quer me matar?” disse Arthur ao mesmo tempo em que corria ao banheiro e limpava sua boca.
Fiona então aproveitou e desceu ao porão e ficou abismada com o que viu.
“Como uma pessoa que tem medo até de respirar pode ter uma criação de tarântulas?”
“O que faz aí!? Quem lhe deu permissão para bisbilhotar? Saia da minha casa e não precisa mais voltar!”
Fiona saiu calada e ressentida e passou o resto de sua vida observando Arthur pela janela e percebeu que depois do beijo o jovem rapaz saía frequentemente as noites. Até que uma madrugada, o viu saindo com uma mala e pregando um bilhete na porta. Fiona esperou ele partir e foi ler o papel.
“Moradores da vila, eu, Arthur Bluebook, estou partindo, deixo essa casa para vender, alugar ou fazerem qualquer outra coisa. O motivo de minha partida é Isadora, uma prostituta da metrópole que me mostrou o verdadeiro sentido da vida, o amor e a luxúria. Obrigado a todos aqueles que me ajudaram e até breve.”
Fiona não acreditou no que leu. Como ele preferiu uma prostituta ao invés de uma moça pura como ela?
No dia seguinte foi notícia na região: “Fiona Escarlate se joga no rio Neunúfrades”



P.S.: Arthur morreu tempo depois de sífilis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário